Sobrou de toda mágoa – e destas ânsias – este anjo cujos olhos renasciam entre os vôos que, nas asas, se insurgiam por entre os céus sem fim e sem distâncias.
Ele girou em torno de seu rosto num estertor de infinito que o nutria, e, na manhã reescrita que o seguia, vi a rosácea inconsútil de um sol-posto.
O anjo, de asas de sombra e luz que medra, deixou seu nome em tudo quanto existe, por ser, entre as estrelas, a mais triste.
Tudo que o anjo quis, perdeu na queda... O ardor pelo que morre e o rosto terno de alguém que se cansou de amar o Eterno.
SONETO
Bendito seja todo esquecimento; bendita, também, seja toda sede e tudo mais que nos desperte a carne ou que nos torne estranhos ante o espelho.
Bendito o nosso instante mais impuro; o que sobrou de nós e o nosso início – tanto vazio e cor num só começo –, tantas mortes das quais nos refazemos.
Que Deus nos abençoe por entre as pedras com o ressoar cruel do vão destino; e que eu O veja inteiro ( em cada passo )
– e que possas senti-Lo em meio aos braços com os quais, na dor, abraças teus joelhos... Bendita seja a paz destes silêncios.
A CASA DE ASAS ou A SEGUNDA METAMORFOSE DA CASA: SOBRE UM TEMA DE DAMÁRIO DA CRUZ
à memória de Eugênio de Andrade
de pouquinho em pouquinho vai se erguendo esta casa feitinha de silêncio
mas não se contentando apenas em ser casa vai se tornando nuvem
e se estende por terras distantes, esta casa que agora voa, voa...
ela dorme no vento e sonhando-se casa é pássaro na rota
porque toda ave sabe sem saber-se ave-casa das rotas do retorno
porque toda ave sabe tornando-se ave-casa da forma e seus contornos...
mas, que dizer então desse pássaro-casa que um dia será chuva?
O EVANGELHO SEGUNDO NÓS MESMOS (parte XI)
Mas entro e, Senhor, me perco na rósea nave triunfal. Por que tanto baixar o céu? Por que esta nova cilada?... CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
...ao mestre e amigo, José Jerônimo de Moraes, esta Ladainha.
XI
tudo é tão terrível, Senhor e em tudo existe o mesmo sopro a mesma ordem a mesma luz o mesmo instante o mesmo fim que sei eu dos vivos, Senhor que sei destas cartas abertas destes dizeres desta caneta deste poema da superfície do papel ou da superfície de tudo sinto-me nascido para o eterno recomeço meu coração – mangueira partida meus olhos – lanterna afogada e em tudo existe a mesma vida o coração há de chorar a sua música e o meu olhar se apagará simplesmente deixa-me repousar em Tua sombra, Senhor em Tua sombra maternal e infinita porque o meu corpo já Te escuta porque o meu espírito sempre Te buscou porque o meu espírito sempre quis voltar a Ti ah, um cisne em agonia este telhado onde pombas passeiam tranqüilas uma boba cantarolando rumo ao rio esta rainha ensangüentada esta princesa a servir de pêndulo a louca nudez de um rei perdido a rosa sem nome sua espada e o seu veneno a princesa que dormia: que era o próprio príncipe a mirar-se na memória o gigante adormecido a mortalha impossível Orfeu reinventando-se esta estrada estas pedras este poema sujo o tumbeiro rumo aos mares a mar tantas vezes ressurreto...
Silvério Duque nasceu em Feira de Santana-BA. É licenciado em Letras Vernáculas, pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Além da poeta, é músico, clarinetista. Já coordenou a Escola de Música da Sociedade Filarmônica Euterpe Feirense. É autor de dois livros de poesia: O crânio dos Peixes ( Ed MAC, 2002 ) e Baladas e outros aportes de viagem (Edições Pirapuama, 2006)
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número
9 - teresina - piauí - abril maio junho de 2011]