De corpo Onde acabas e recomeças De terra Onde é teu o perfil incompleto De fogo e ar Onde exultas e te revolves Do que dentro existe e cessa Do que de fora brota
Daquilo que nunca te encontrará Do que é pequeno e amplia o mundo Do que jamais se perdeu
Do que se sabe e repousa Do que não se encontrou
Do que morre Do que é silêncio e claridade Do que é mais que um sangue
Um puro momento feito Entre ti e o teu reflexo inerte.
ELE VOLTA SEGUNDA VEZ E CANTA
Eu devia ter percebido que afinal tudo estava distante devia ter notado que algo estava ao contrário Daquelas palavras não há e sabe tudo a mau agouro As navalhas não se colocam daquela maneira dentro das algibeiras. Nos versos elas não são assim São só coisas p’ra espantar, às vezes para servir de pretexto ou à culpa ou à dor. Mas por favor nunca à justeza dos dicionários.
Eu devia ter visto que os pregos ora aparecem ora desaparecem. Que a coroa de espinhos e tudo o resto não perdura. Como não me fui lembrar que podia ser apenas murmúrio ou sufocação?
Que fazia eu ali se os mantos as rendas que cobriam as cabeças as vestes tão pequenas olhadas lá de cima mesmo algum garoto que brincava mesmo as pedras do chão ou um pássaro que oscilando cruzava o céu entontecido ou um grito de um mais impaciente de repente eram imagem eram ilusão eram miragem E tudo muito para além de qualquer ideia feita. Como não me lembrei eu de que a um espanto se segue provavelmente um arrepio?
Há anos que eles empregam termos que só nos perturbam. Depois vem um grande pedaço de silencio. Depois há sempre um ou uma que executa uma genuflexão Depois repara-se que aquilo não podia ser assim mas é demasiado tarde, já tudo se desvaneceu e só ficaram ruínas ou p’lo contrário folhas cobertas de uma escrita compacta que é quase impossível esbater. Um embrulho dizem-me e eu viro-me com inocência Que não, dizem-me ainda só podia ser um animal Ou antes - segredam-me por vezes - tudo o que vês é com toda a certeza uma montanha. E então faço as minhas contas na cabeça cruzo um esvoaçar talvez um pouco violento uma busca de algo inconcreto que me vem à memória uma pena tão funda tão abandonada tão sem adjectivos nem contornos.
Eu devia ter reparado que não basta chamar ou ser chamado As palavras as melhores as mais exactas são mesmo essas umas vezes só secura outras vezes longe de tudo E é então que se sabe que o ar que nos rodeia terminou para sempre É então que se compreende
que as coisas não se movem misteriosamente que as coisas simplesmente já não estão nem nos mares nem na terra nem nas casas onde se assiste a crimes e a salvações.
Talvez ainda vá a tempo, penso cá para mim, talvez ainda possa ver e destrinçar verbos e conhecer substantivos. Que as palavras tontas e coitadas horizontais e verticais não são efémeras ou belas, não são sequer cintilações nem tampouco recordações de algo perdido pois só residem só se detêm sem que as toquemos
não no futuro não no passado mas no eterno presente.
PLANISFÉRIO
Gira o tempo, gira o mundo, gira o olhar na direcção do sol e o que gira é a nossa estrela polar, o nosso horizonte transtornado apanhado pelo negrume azulado da lua, o firmamento de tudo sobre a nossa casa, o nosso corpo e a visão da matéria planisférica, violeta na manhã, branca na tarde, multicolor no dia que corre transborda se petrifica nas palavras nas cores e visões nos desenhos do interior do corpo, da criação do mundo e do mar que rodeia os continentes imaginados que somos que fômos que seremos quando o espírito a glória do senhor das formas for simplesmente um universo terreno e com tudo na sua existência fluvial e matérica de Atlas imenso nos traços da nossa fotografia completa.
PESSOA INÚMERO aos Irmãos de H.
O que me interessa em Pessoa (máscara) seja ele Fernando, Alberto ou Álvaro é o ar grego e geométrico da sua casa - casa dos seus versos exteriores - onde as plantas terrenas, totalmente terrenas com que enfeitou os seus dias e noites aguardam sonolentas no calor do dia a música, as abelhas, a lenta putrefacção da clara Natureza na noite nascente.
Parece que escrevia bem o inglês (descobriram isso, embora não seja seguro depois de falecer) tão bem que os rostos de Tennyson, Shelley, Whitmann, Shakespeare e alguns outros indistinguíveis vieram pousar sobre o seu rosto engelhado: numa aldeia galesa os habitantes julgam recordar-se dum fantasma de gabardina que numa tarde foi segundo consta avistado por velhos, crianças e amáveis mulheres andando entontecido pelas ruas sem destino sombra aqui, sombra acolá - o que era, aliás, apenas fingimento.
Por cá evidentemente sua-se de novo o ranho, o esperma e o sangue dos poetas (carrascão, ginjinha, uísque e soda?) a sério e a brincar o que dá jeito expressão serenidade. Algures, num jardim real, o neófito agoniza ombro com ombro, barba com barba para que a chama da candeia luza ainda numa rua onde nunca choverá Algures, um laranjal incendeia-se de repente e as aves partem em bando mas já frias como dobrada à moda de nenhures. Numa sala um gato absorto olha o mostrador dum relógio olha sem entender e numa certa janela um lenço acena de vez
E a figura de arame de Pessoa (máscara) dentro dum automóvel de brinquedo na velha estrada de Sintra que não existe, nunca existirá - e por isso, ó minha alma, é bem real - despenha-se explodindo no coração
do Mundo (ausente).
PRECE
O senhor Marcelo o senhor Gonçalves o senhor Ramiro que dá passos que ressoam.
A senhora Adelaide a menina Cecília o gato do senhor Victor um ronco muito ligeiro sobre o ar, sobre as flores.
A tinta no meu peito espalha-se no vosso rosto canta como um galo saudado o intervalo entre os meses, os grandes meses bravios em que acordais de repente, surpresos como os arcanjos.
Senhor Marcelo, protegei-me dai-me o fruto do vosso dia impoluto Menina Cecília, por favor por favor dizei-me que a imensa floresta me será sempre propícia.
As árvores, as grandes árvores solitárias suspensas como ruas que tremem quando amanhece que tremem como vós, senhor Ramiro, velho compincha quando ao pequeno almoço ergueis a vossa face lívida.
Meus amigos, meus amigos, pequenos animais nocturnos frutos como eu indistintos minúsculos pedaços de acasos.
PARQUE
São apenas três manchas brancas sobre as plantas do jardim e outra azul mais pequena mesmo posta ao lado dum banco de tábua
E nós pensamos: uma para as saudades, a segunda para os remorsos a terceira para os que tentam reter a tosse que os sufoca. Mas a quinta mancha é cinzenta. E apesar de fria como um sobressalto pesa-nos no peito, pesa-nos na memória e revolve-se no ventre enquanto tentamos reflectir angustiados.
Uma lua e um sol estão sobre a silhueta de um animal morto hirto, com estranhos círculos no lombo, os olhos cintilando como alguém escondido numa viela cheia de lixo.
A vossa vigília durará até que os ramos se afastem que o transeunte de acaso de repente caia de joelhos ante a noite que chega, guardando um grito na garganta
e fale mansamente olhando as árvores que desaparecem na luz.
in “Escrita e o seu contrário” (livro inédito)
Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta, artista plástico e ensaísta. Autor de livros como Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998) e Os olhares perdidos (2000).
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número
9 - teresina - piauí - abril maio junho de 2011]