Volvê-lo
a tenra imagem que então moldavas em cor e ritmo.
Das
feições do fogo fizestes seis fauces a hefaistos
à força
das mãos que lhe o dera a ferro o mero artifício
Vieste
agora encerrar do fogo a lira incandescente
E assim
volver a imagem que doas a chama em ti latente.
Vieste
em fúria e foste envolto em seu corso de rastros
Nas
línguas de fogos que alastrastes em volteios e lapsos
Tu
impiedoso soube incendiar seus hostes com bênçãos
Tendo
em vós mãos, falanges em voluta circunvolução
Tu que
a tudo quanto incendiastes: santelmos, faetons
Volveste
a flama e a centelha sua súbita força em ignição
Tu
fátuo, espraiado ao nu descampado semeaste a cinza
Serpentino:
incendiário dançarino de neon.
II
Foste
ao fogo encerrar seu torso sinuoso envolto à mão
dá-lo
alento e lascívia à ínvia flama incontida.
Foste
ao fogo demarcar rasteiro aceiro e cinzas
ao
sopro ferruginoso de faíscas a rés do chão.
O Fogo sinuoso
enseja gestos que na sombra são
efígies,
écrans, símiles de sol aos mortos concedida
e o
arremedo de sombras em ademanes demoníacos
reencarna
os corpos e os ritma em surda canção.
Corpos
insidiosos. Esquivam-se ao toque das mãos
E as
sombras que em vos se avivam, evanescem
ao
menear dos móbiles fugidios em refração
Nem
meneio, nem som se dão às benesses
duas
espáduas ondeiam como labaredas em s
E assim
foste ao fogo atear fogo em vossas vestes.
III
Do fogo
o bronze forja o corpo e à mão ferroa
O torso
salsuginoso e viril que em ti se doa
Do fogo
vos urgíeis loas ao sol e à noite
Do fogo
força e movimento, martelo e foice.
Do fogo
conformas o torso, o mó e a espada
Aguças
o corte, adelgaças feroz suas sarças
Do fogo
Deus fez-se destroço, revolto em pó e aço,
Do fogo
chumbo e enxofre e o salobro das estátuas.
Do fogo
o fio e a lâmina, a flâmula em ti se alastra
Do fogo
o ferreiro fere à esmeril o fio da faca
Do fogo
a oração álacre o funéreo a mortalha
Fel e
magma quereis forjar do fogo a dança
Zanza
dança entre espáduas que avançam
à
lembrança do fogo em fúria que mo arrebata.
IV
Do fogo
o ferreiro forja a força dos cascos à ferradura
Do fogo
se amolam vossos incisos dentes a mordedura
Do fogo
os cavalos suados à tração dos músculos ejaculam
Do fogo
o falo o gozo a foda a esfoladura.
Tu que
foste do fogo a força e o louvor fizeste
De suas
labaredas a desmesura a bússola a peste.
Do fogo
sinuoso o torso espadaúdo a dança das omoplatas
Tu que
a tudo auscultas: lucíferes, sacrifícios, desgraças
Faze do
fogo a haste a riste sobre a terra e a terra toda desgarrada
Faze
terra e fogo suas raízes etéreas aos deuses que inventara
Tu, uno
fazei-me servo, genuflexo, ressurecto agora.
Fazei-me
o gozo, a brasa incendiária, uróboro que a si devora
Do fogo
se deflora a força ulterior que em ti aflora
Do fogo
o ferreiro em seu machado a força dos cascos forja
V
A
sentença da carne é severa: marcar a ferro o corpo
Fazer
dele pele e ardor perpétuo com sangue e cautério
A
sentença do ferro é ferir: imprimir no corpo o coscoro
Tatuando
em teu dorso a insígnia dos ressurrectos.
Serás
assim outro Caim, porque roubaste do irmão a primogenitura
e deste
ao diabo suas mãos em comunhão, negaste o flagelo e a paúra.
Foste
então ao deserto aprender com o fogo a fundição do ferro
Pois a
marca do fogo é fazer-se eterno fazedor de desertos.
Não
sabereis quando ao fogo arremeter sua mão destra
Porque
o fogo e a memória se entreolham um ao outro
E o
outro a ele não mo arrenega, simplesmente revela:
A ceifa,
o ouropel, o vinho, o hidromel e a lenha
E em
tudo estará sua presença, sua lava, sua cantera
no pão
e no mosto ou na luz fugaz dos corcéis que subleva
LI
1.
Sou um homem de força, afirmo.
E por isso ergo esta casa a partir do solo
Onde ela me cresce desde um lugar baldio
Onde a povôo com o movimento dos corpos
E ela se encorpa como o tronco de uma árvore
Monumento pórtico
Em seu ofício de casa que conquista
o teto com renovos e o abobada todo.
Por isso digo: sou um construtor de força.
Ergo-a contra o sol com cinco janelas e um horizonte
Sinto-a em cada ângulo soerguer-se em meus ombros
E é como uma planta sáxea fincada ao chão
Uma planta arquitetada na idéia da projeção
Esta casa me é necessária
Ela deságua líquida na via pública
E irriga as ruas.
Numero-a porque não tem nome
E ela precisa ser diariamente invocada.
Ela espera o chamado do mensageiro às palmas
e ele vem.
Sobre os umbrais vem ele para adentrá-la
E deixa uma carta no chão.
Esta casa me resguarda do turbilhão das ruas
E por isso a amo
em cada ângulo de sua geometria obtusa.
2.
Para que me ouças, repito: sou um homem de força.
E ergo a casa para habitá-la com vagar
Ergo-a para eletrificá-la ao toque do interruptor
Incendiá-la pelas luzes que fulgem nas lâmpadas
Em cada reentrância, ergo-a para vê-la
geminada à lavra do chão
Eis que desde aqui, frente ao umbral de adentrá-la
A casa irrompe suas margens contra um rio que
transborda
Meço o perímetro de seu lugar de habitação
E a casa agora é um forte e me encobre
Não sei como ela assim se transforma
Mas a casa como um útero envoltório me circunda
E mura-me no murmúrio de estar dentro e só
Casa túnica. Invólucro.
E digo: toda submissão é regozijo.
3.
Ergo esta casa para dobá-la em suas portas
trancafiadas pela noite.
Ela resguarda uma senha nas chaves de abri-la.
Sei a palavra exata na língua baldia que a pronuncia
Assim, trancafiada na noite
A palavra dá-me a franquia.
Percorro agora o entorno à vácuo de seus corredores
É a circulação do ar que me enleva
E ando pelo levitar das sandálias que em mim haviam
e não mais há.
Lembra-te?
Breves éramos nós nesta casa em vigília.
Mas agora há luz e líamos.
Os livros e as linhas da mão.
Agora
Sei que a casa me descalça os pés
e a palmilho.
Sei que em casa nada pode a noite
contra a incandescência das lâmpadas de tungstênio
que a eletrificam.
Por isso digo: faça-se a luz
e a luz me perfila.
Ranieri Ribasé
cientista político e poeta. Autor de Os Cactos de Lakatus (Amálgama, 2003)ede Ezra
Pound As máscaras doutrinárias do esteta (Fundac, 2003). Professor
da Universidade Federal do Piauí. [ranieriribas@yahoo.com.br].
[revista
dEsEnrEdoS
- ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro
março de 2011]