“E para que ser poeta em tempos de penúria?” Fernando Monteiro
Insepulta
jaz a pergunta acima
e bem
acima do motivo
supostamente
íntimo
visto no
verso de um dos últimos poemas de Roberto Piva.
A
inquirição, franca, fende a fina porcelana de cera dos ouvidos.
Sabemos
da penúria,
porém não
queremos saber dela.
Plantamos
a flor carnívora,
mas
desviamos a vista
quando o
jardim do pecado
castiga
com isso:
indiferença,
acídia, tédio mortal
no peito
de avestruzes
(os do
estômago forte
para
literatura feita
com lixo).
Lixo, lixo, lixo:
afirmou
três vezes, o Roberto
Pedro da
não-negação pívia,
no vôo de
Gavião livre
acima da
poesia brasileira
do
avestruzismo afundando
no tapete
vermelho
dos
prêmios paulistas
que nunca
foram para as mãos
paulistanas
desse ímpio gentil,
suave no
convívio
porém
feroz na recusa
de
comércio literário
&
negócios do filth.
Tardia
lição de um pária,
a
pergunta posta no lixo
basta
como indagação direta,
resta
como interrogação pura
de dentro
para fora da sua vida:
para que
ser poeta em época
de bosta
blindando tímpanos?
Ainda incomoda muita gente,
porque perguntar
é claro que ofende
(e
elefantes chateiam muito menos,
naquele
refrão de cantilena),
a penúria
a pesar mais, muito mais, do que setenta e dois mil paquidermes do circo
embutido no círculo de dúvidas levantadas pela palavra indicando [múltipla
escolha, agora]:
A) “Um
idoso precisando de grana,
com choro
e sem vê-la?”
B) “O
solitário sem recursos,
num
prédio degradado da Sampa
que faz a
delícia dos cineastas
de olho
de vidro?”
C)
“Aluguéis em atraso, dívidas,
a
necessidade de tratar os dentes
de
ilustre entre os inadimplentes?”...
D) “Etc
etc.”
[OBSERVAÇÃO:
Dessa forma, é doce morrer no mar
da
pergunta debitada ao desalento, remetida ao gosto pelo autoflagelo,
o
fingidor a fingir que a penúria seria só a do poeta,
o mais
marginal dentre os vates menos ilustres da nossa lira,
pois Piva
não teve sorte na vida, nenhum amigo na Folha
e foi
curto minuto no noticiário noturno apenas quando morreu
en
passant para a
TV voltada para a montanha do Lixo.]
“E para
que ser poeta em tempos de penúria?”
é um dedo
que nos acusa, trêmulo,
e não
devido ao Parkinson do poeta.
O fato é
que ultrapassa do tecido biográfico,
dos dados
de cartório, geografia e outros
[PIVA,
ROBERTO – São Paulo, 1937/2010]
e
progride em acusação, do patamar da pobreza
para um
geral “mal estar na cultura”,
uma
doença suspensa sobre as cabeças
acima das
quais paira a cinza
da
pergunta do bardo por anos e anos
tentando,
na ignorância da penúria,
“ressuscitar
a arte morta da poesia;
errado
desde o início,
não
rigorosamente,
mas vendo
que havia nascido
num país
meio selvagem,
fora de
época”.
Isso é
fragmento de Pound,
ou um centavo
da sua franqueza
dedicada
ao mesmo objeto
do falso
desdém
de
Marianne Moore:
Eu,
também, não gosto dela.
Lendo-a,
no entanto, com um
perfeito
desdém por ela,
descobre-se
na poesia
um lugar,
afinal, para as coisas
autênticas.
“Delicada situação financeira” etc.,
referiram
alguns necrológios em lamento
impresso
de delicadeza uníssona,
eu
reconheço, para com a memória de Piva.
Com
certeza, delicada era a espessura
de nuvem
do seu
sistema (?) de vida
refletida
no espelho d’água
de uma
foto fazendo tremer,
na imagem
do poeta sessentão,
a marca
dos anos finais
de sol
negro no seu endereço
de
solidão no centro populoso
da maior
cidade da América Latina:
Aqui
morou um menino de fazenda
transformado
em poeta urbano
de capa
do terceiro caderno
que o
mendigo depois usa
com
finalidades higiênicas.
Nas
páginas de jornais,
quando
acontecia de se lembrarem dele,
Roberto
sabia encenar para a estagiária
enviada
da redação (a propósito de qualquer besteira),
o lirismo
transverso de uma espécie de anjo
decadente
a fazer aquelas perguntas tortas
pelo mau
uso do cachimbo fora das bocas
da moda
em Liberdade, Vila Olímpia
e Moema.
Não era,
entretanto, um amador em espetáculo
performático
(y otras frescuras),
e o caso
da pergunta que ele deixou perfilada
num verso
até simples,
adverte o
tempo de aposentar poetas,
abre o
verbo,
diz
claramente:
em épocas
de penúria deprimindo o espírito,
a poesia
se torna absurda,
sem
sentido, dispensável, inútil,
deslocada
e carente de público
inclusive
para ouvir o tilintar
do
dinheiro, realmente,
num poema
de Ritsos:
Tarde
sombria como um bolso vazio.
No fundo do bolso um buraco doce, penugento.
Por lá
passas um dedo em segredo,
tocas a própria coxa como se tocasses
outro corpo, maior, estranho, profundo
– o corpo da noite ou da tua morte.
Por esse buraco caem as moedas todas,
mesmo as de ouro, cunhadas com a efígie
esplêndida e jovem do Príncipe dos Lírios.
A
pergunta de Piva – essa fissura –
revela
meramente o que ela revela,
pois o
cão do derradeiro livro
não
produziria um ganido,
ao latir
para tímpanos blindados
pela
incultura.
É claro
que faltavam conforto, vinhos
e
rosas,
sendo
parcas as rendas do herdeiro
de
antigas terras sumidas
com
roseirais na bruma.
E poucos
os meios (mais do que os fins)
para os
longos fins de semana,
o garoto
da banca de revistas,
a
importada edição dos inéditos
de Pier
Paolo Pasolini.
Tudo tão
verdadeiro quanto distante
da
essência de outras penúrias
entre
esquinas de garoas
e
galerias de arte em vernissages
cujo
rumor de cálices noturnos
chega aos
guardadores de carros
como a
música do paraíso
de
inalcançáveis perdizes.
Para que
ser poeta em tempos assim?
Quando
Piva faleceu (e faz pouco tempo),
todos
evitaram cuidadosamente
a
simplicidade desconcertante
da
interrogação relativa
aos
Tempos de Penúria
Intelectual,
Moral,
Social,
Sexual,
Musical,
Teatral,
Poetal,
Caricatural...
virando
uma exposição no MASP,
um
patrocínio da Lei Rouanet,
uma
loucura domesticada,
uma
homenagem ao terraço Itália,
uma
retrospectiva de metrô dedicada ao Bardi
e
esquecida dos Flávios da família patrícia
da Casa
do Caralho pichado
no
monumento àquela revolução
Constitucionalista
(com “C” grande)
que é um
caso de São Paulo,
como
Jânio Quadros,
os
Mutantes,
os irmãos
Campos
e Hebe
Camargo.
Tudo isso
está saindo assim
para
dizer que Piva começou
quando
das edições de Massao
(por
favor, não deixem morrer o Editor, sem que ele ouça o “Ohno!” sendo chamado
entre os nomes fundamentais da fé clara na poesia, numa época de treva),
os livros
despontando da Oscar Freire
entre
aguardente e rara consolação
de um
Piva no meio dos pífios
entre
poetas lançados assim mesmo
(o
samurai não usava a katana,
mas
longos cabelos de Mifune
e o olho
de receber uma Hilda Hilst
com todas
as honras).
Hilda!
Era instigante encontrar pessoas estranhas
nos
bares, moças de botinas, atores que não dormiam,
atrizes
que fumavam demais,
gente
saudável do modo mais incorretamente político
possível
entre invernos e repressões,
notícias
vagas de espiões
e
manifestos da classe unida
para
terminar em separação,
“Diretas
Já!”
e outros
gritos que vulgarizam poemas
ditos
longos (e pré-ditos), elegantes,
essas
porras de novo,
e Piva e
a prova de que nada muda
– quando
no fundo se deseja
a mudança
de Lampedusa,
de Salina
para Salina.
Fui mal,
nessa tentativa de síntese.
Sou ruim,
quando se trata de ver de longe
e de
perto ao mesmo tempo.
Finjam
que não leram,
e
recomecemos dos escândalos paulistanos
que
sempre terminam bem absorvidos
pela
capital grande demais para se assustar
com uma
arenga de artista.
Roberto
Piva, apesar disso,
bem que
tentou,
enquanto
seus amigos agora respiram,
afinal
saudosos, aliviadamente,
na
neblina.
Ele aceitou pisar ao contrário
na
sarjeta cuspida pelos mendigos,
entre
seringas e camisinhas usadas
por trás
de fumaças das pamonhas
cozidas
para os nordestinos
da São
João dos antigos cinemas
pornôs
reforçados por sexo ao vivo.
Era o
puro desespero que Piva via
no palco
e na platéia de mãos sujas
de
esperma e gosmenta casca de milho
no chão
das salas vinte e quatro horas
sem
limpeza,
até vir
uma mulher com o uniforme de serviço
a fim de
suportar a imundície removida com pá,
porém sem
a luva de uso “uma por vez”
de
recomendação da Saúde Púbica.
Roberto
Piva estava pobre e triste,
porém a
pergunta que ele deixou
feita
para a Indiferença,
dirigida
ao Tédio,
destinada
à Morte (e fim),
não dizia
respeito somente à conta bancária
de
movimento certamente ridículo
para o
critério dos cheques especiais regulados
pela
central de algum banco centralíssimo
na
Paulista ou no antigo Viaduto do Chá
sem meias
xícaras de medidas
contra o
comércio de artigos de plástico
dos
miseráveis que comoviam o poeta,
uma vez
que as lágrimas de Roberto
raramente
eram para si mesmo,
a cara
amassada no espelho
implacável
da queda dos cabelos
também
nos travesseiros
ligeiramente
azedos
da longa
noite sozinho,
sem
beleza.
Tenho uma
história para contar, ainda.
De certo
modo, é uma história sobre Piva e eu,
que nunca
nos conhecemos em São Paulo
ou no
Recife ou em outro lugar qualquer
deste
país de bienais e flips, flops e flups.
Acontece
que alguém de um “Círculo de Leitores OF”
(assim
mesmo) resolveu me convidar para ler
fragmentos
de Vi uma foto de Anna Akhmátova
e eu
perguntei se pagavam,
e a moça
do outro lado da linha
[num
mau poema, isso quer dizer telefone]
respondeu
que “ofereciam passagem e hospedagem”,
mas cachê
não.
Pagamentos
eram para a sala,
para “o
rapaz do som”, “a companhia de eletricidade”,
a
“gráfica dos cartazes” e tudo o mais,
menos
para o poeta convidado para recitar poemas
ou que
raio fosse (digo eu).
Irritado,
eu emendei: “Dizerpoesia”.
Ela
disse: “Pois é. Não há dinheiro para isso.”
Eu disse:
“Eu já entendi. Mas você devia ter dito DIZER POESIA,
em vez de
recitar poemas.”
Ela
disse: “Hein?”
Eu
desisti.
Mas
voltei a perguntar: “E o que é OF? É inglês?”
Ela
disse: “Não! É Orides Fontela. Circulo de Leituras Orides Fontela”...
Então, eu
aceitei ir “recitar poemas”,
isto é,
aceitei viajar sem ganhar um centavo,
com um
propósito “nobre”, “cultural” (essas merdas)
embora a
própria Orides houvesse escrito belamente:
Viajar
mas não
para
viajar
mas sem
onde
sem rota sem ciclo sem círculo
sem finalidade possível.
Como eu
poderia cobrar alguns trocados
de um
Círculo de Leitores tocando
a memória
tristíssima da poeta mais pobre do mundo?
Orides
Fontela foi despejada,
ficou sem
lugar para morar
e teve
que se alojar de qualquer jeito
na Casa
do Estudante,
na mesma
Avenida São João que você conhecia tão bem,
meu poeta
(alguma vez chegou a ver Orides
recolhendo
algum bichano transido de frio
entre uma
delicatessen e um hotel para lúmpens?)...
Esse
convite foi na semana em que você morreu, Piva,
eu estava
comovido e a lembrança da pobre Orides
veio
destroçar ainda mais a minha resolução de cobrar
pra
viajar com rota e para um Círculo liso,
com a
finalidade de ler partes do Anna Akhmátova
ou
qualquer outra excrescência de tempos de penúria
(para
que ler poesia?), de maneira que eu propus:
“Eu
aceito, mas vou para falar sobre o Roberto Piva”.
Ela:
“Quem?”
Eu:
“Piva, o poeta que acaba de morrer.”
Ela: “Era
seu amigo?”
Eu: “Não”.
Ela: “E
por que o senhor quer falar sobre ele?”
Eu:
“Porque um dos seus últimos versos não me sai da cabeça”.
Ela: “É
tão bonito assim?”
Eu:
“Versos não precisam ser bonitos. Versos precisam ser verdadeiros.”
Ela:
“Diga ele”.
Eu:
“Diga-o”.
Ela: “Eu não
sei qual verso é esse que não sai da cabeça do senhor.”
Eu: “Eu
sei.”
Ela:
“Então, diga”.
Eu: “E
para que ser poeta em tempos de penúria?”
É claro
que eu terminei indo lá,
no Centro
de Leituras Orides Fontela,
e falei
sobre Orides e sobre Roberto,
ambos
pobres e doentes e grandes poetas
que São
Paulo ignorou de diferentes maneiras,
autorizando
o Brasil a ignorá-los também.
Porque,
realmente, não há nenhuma razão
para se
ser poeta em tempos de penúria
feita da
não-percepção do muito que depende
de um
“carrinho de bebê vermelho ao sol”
ou
qualquer outra banalidade aparente
voltando
num sonho leve como avencas
na sombra
do perdido paraíso da infância
de
vagalumes presos.
Eles
estavam já apagados, Piva,
na palma
envelhecida de Parkinson e saliva,
cansaço e
mais “os anos sem emoção” (...)
São Paulo
desaparecera por detrás da juventude
da
geração de Robertos confiados
(de modos
diversos) na aventura da vida
a trair
pelo menos os Pivas (e as Orides).
Não há
mais poemas nos muros de eleições sem inspiração.
Não há
mais inspiração para seja o que for que ainda não tenha sido traído
ao menos
por distração (concedido seja o beneplácito da dúvida sobre a determinação de
algumas traições).
“E para que ser poeta em tempos de penúria?”
Você
perguntou tão francamente
que
ninguém poderia prestar muita atenção,
meu poeta
pronto para morrer desse lamento,
além da
doença e da orfandade de si,
Orfeu
perguntando “para quê”?...
E todos
fazendo como se a pergunta
não fosse
com ninguém,
além do
próprio poeta Piva.
____________________ ([NOTA DO AUTOR: O poema já estava terminado – exatamente no dia 3 de agosto, um mês após a morte de Roberto Piva -- quando me deparei com a seguinte notícia, conservada na internet: 13 de junho de 2010... O editor Massao Ohno, de 74 anos, morreu anteontem à noite na Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba, onde estava internado havia uma semana etc. Apesar disso, decidi manter o verso referente ao Massao – verso que ainda o toma por vivo – íntegro no seu engano, uma vez que a notícia sobre a morte do Editor, despercebida, é mais um exemplo dos “tempos de penúria” de que fala o verso do Piva. FERNANDO MONTEIRO]