Queria muitoter tido a vidaquenão teve. Amigosquenão conheceu, amoresquenão rejeitou. Pensaremtudodiferente acalmava a suaansiedade. Sentado há horasemfrente do computador, olhando o traçovertical e negropiscar na tela, lancinante evidência do texto a serescrito e queelenão conseguia escrever. Desdequesua professora da sextasérielhe dissera quesuaescritaeraelegante, ele se convenceu de que seria umescritor. Vidaelegante, comintenções dignas e finalidadeimportante. Paraisso, entendeu que deveria cursar alguma faculdadeemCiências Humanas, nas Letras, na área das Literaturas. Prestou e ingressou. “Escritor”, ele dizia, “hei de serconhecido”. Aindamelhor se não nessa vida, é parteimportante das intenções dignas não se preocuparcom o sincronismo do reconhecimento de qualquerproduçãoartística. Eletinhaouvido, emqualquerseminário, queumpoetabemvelho, umtal de Horácio, tinhaescrito alguma coisaembronze, ou seria mais resistente que o bronze? Não sabia direito, mas a palestrante falava sobre a imortalidade da obra de arte e ele achou bonito. Queria contarhistórias. Animava-lhe a idéia de que haveria leitores, ávidos, emfilas de livrarias. Esperou até o final da graduação (durante a qual se dividia entre a sala e o trabalho, uma vezque, mesmo recebendo todos os tipos de auxílios da universidade, aindaassim precisava trabalhar, se pensasse emcomprar os livrosquetinhaqueler, e quetambémnão leu, porque precisava trabalhar!), quando juntou algumdinheiro e pôde rumar pro interior, onde pretendia dedicar-se exclusivamente ao ofício de escrever. Sempre se confundia se era do Bilac ou do Drummond aquela frase da porcentagem de inspiração e de transpiração de que se precisapara se fazer boa poesia (confundia-se tambémquanto a quanto ia comqual, mas lembrava queeramuito boa!). Nova Europa era o nome do lugar escolhido, perfeito, absolutamente inspiratório para se compor uma obra de arte. Mudou-se e logo o primeiromóvelque comprou (seminovo, de umbrechóquetambém vendia coisasnovas) foi essa escrivaninha, sobre a qual se inclina agora, pensando se fumaounãomaisumcigarroantes de começar. Eraantiga, saía-lhe umcheirocomo o que vem das páginas abandonadas dos livrosquenão se folheiam mais. Cheiro de árvore, madeiramorta de ondetambém vem o papel. Pensou, a princípio, emescreversóempapel. Mais tradicional, nada de mouse e tecladoonde deveria haverapenas a tinta e as idéias. Mascomo faltavam ainda as idéias, passou boa parte do seutempo perambulando pelacidade à procura do quecomprarpara certificar-se de quenadalhe perturbaria o momento epifânico da escrita. Imaginou-se com a bic subitamente semtinta, o papel esgotando-se depois de tanto escreve-não-gosta-e-amassa, as idéias perdidas porque faltou, depois de uma tempestade, a luz. Não. Diante de uma loja de eletrônicos, antesmesmo de entrar, foi convencidopelovendedor da imprescindibilidade de se possuirumcomputador de colo (enquanto o homem falava, ele pensava na curiosidade do seunomeinglês). Perdido nessa traduçãoesdrúxula, não viu outraopção a nãoserlevar o aparelho. Imaginou que a troca do suporte seria crucialparadesenrolar o momento travado emque se encontrava. Sem as futuras folhas espalhadas pelochão, estaria livre das evidênciaspungentes de que a escritanão ia bem. Sónão contou com o traçonegro e vertical, pulsando incessantemente na réplica da folhabranca a suafrente. Infinitamentemais angustiante, porquenem a impressão de quejá se fez alguma coisa (que as folhas amassadas no chão invariavelmente dão) existia.
Voltou. Começou a pensar nas históriasque conhecia, materialseguropara a suaarte. Nadalhevinha à cabeça a nãoser os fatos da suaprópriavida. Ora, não queria escreversobresimesmo, nemsobre as pessoas do seuconvívio. Comobomalunomedíocrequefora entendeu, emalgummomento, que a vida e a obra do autornãosão necessariamente a mesmacoisa. Os versos podem serdevassos, mesmoque o poeta seja pio, nãoeraisso? Enfim, não importava. Queria uma narrativauniversal, quenão se restringisse a uma épocaou a umgruposó de leitoresque se identificassem com a história. No fundo buscava expurgar alguma coisaque sentia universalemsi, masnãotinhaidéia do queisso viesse a ser. Intrigado quanto ao enredo (queria explorar os recônditos da sociedade? Descrevercomportamentos? Vícios e virtudes?), começou a elucubrar o tom, o tipo da suaobra (queria fazerrir? Verterlágrimas? Filosofar?). Não sabia... considerou, então, o público. Porqueera a únicacoisaque restava. E se lembrou da discussãosobre a categoria de leitor. O leitorideal, o serimagináriocapaz de reconhecer todas as alusõespresentes no texto e, portrás dele, de recuperar a intenção do autor. Masqueintenção? Elenemargumentotinhaainda. Mas e daí? O leitor é quem decide se gostaounão, se é pertinente a narrativa, se a história faz qualquersentido, se você é umpéssimoouumexímioescritor e, porfim, se é merecedor da vidaimportante, de intenções dignas e finalidadeelegantequevocê almeja. Imediatamente começou a se perguntarporque essas pessoasnão gostariam das suashistórias. Quemeles pensam que seriam? O que tem contraele e o seutexto? Algozes!
Num súbitoataquehistérico, derrubou os livros, e o computador, sobre a escrivaninhavelha do brechófajuto. Sentado no chão, as pernasentre os braços, condenou a própriavida... enquanto desistia, notou que o traço na tela semi-acesa ainda piscava, compassado ao pulsointermitente da suaveia de não-autor.
___________________ Mariana Musa de Paula e Silva é doutoranda da área de Letras Clássicas do IEL/ Unicamp. Mestre em literatura latina, atualmente trabalha na tradução do primeiro livro da obra Metamorfoses do poeta latino Ovídio (43 a.C - 17/18 d.C). Email: musadepaula@yahoo.com.br
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano II - número 7 - teresina - piauí - outubro/novembro/dezembro de 2010]